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domingo, 23 de novembro de 2014

UM TRECHO DA VIDA DE CAMÕES - Por Guilherme Storck

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(Da vida de Luiz de Camões.)
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                 Os biógrafos de Camões deram tratos à sua imaginação, para calcularem e lidarem como é que o poeta se governaria  para joindre les deux bouts no último quartel da sua vida, quando é fato que dispunha anualmente duns 15$000 réis pelo menos. E para explicarem o caso referem que Antonio, o seu escravo Jau - a meu ver um luxo exorbitante para um poeta faminto - mendigava de noite nas ruas de Lisboa. O fantasioso Faria de Sousa acrescenta até que uma mulata, chamada Bárbora ou Bárbara, ou Luiza Bárbara, hortaliceira de seu ofício, sabendo da miséria do poeta, lhe dava de longe em longe um prato do que ia vendendo, e algumas vezes dinheiro do vendido, - e ele aceitava-o! - Em vista de  expedientes de tal laia, é pelo menos aconselhavel que nenhum dos mesmos biógrafos levantasse até hoje a questão sobre os meios de subsistência de que Luiz Vaz disporia durante o primeiro período da vida de Lisboa, cuja duração se costuma fixar de 1542 a 1553 (com duas  interrupções de três anos por junto), e sobre o seu modo de vida na grande capital cosmopolita no decurso dos oito anos. Com este silêncio pretendem iludir-se a si e aos leitores, dando ou aceitando por provado, sobre a base dos assentos da Casa da Índia, produzidos por Faria de Souza, que Simão Vaz de Camões e D. Anna de Sá residiam então em Lisboa. Jugariam de certo que os pais davam casa e mesa ao moço descuidado e ocioso, que desperdiçava o seu tempo a versejar, a atar e desatar amores, a vaguear pelas ruas e praças de Lisboa, folgando a deshoras  com amigos e companheiros em reencontros e pendências de mancebo, brigando de noite com outros valentões e deixando-se arrebatar a desafios e duelos. Diz-se que não eram raras em Lisboa as mocidades assim malbaratadas. E os biógrafos camonianos não se pejam de incluir o cantor dos Lusíadas nestas turbas de vadios (é verdade que sem alegação de provas), deixando-o chegar aos trinta anos sem modo de vida ativo, sério e rendoso, a não ser que considerem ocupação digna e bastante os dois anos de guarnição em Ceuta. Que as poesias, que ele talvez dedicou a alguns proceres, seus protetores, lhe granjeassem um sustento suficiente, é fato que ninguém poderá garantir. Todos estão de acordo em como mais tarde - de 1572 a 1580 o o poeta já afamado viveu na última miséria; em como em 1553 teve que ir para a Índia, enrolado como fidalgo pobre, entre os soldados rasos, e pouco antes em condições iguais, ou certamente pouco diversas, à Ceuta. Mas se Camões aceitou ou escolheu o serviço militar, não era um ocioso faniente como no-lo querem fazer acreditar. E não o sendo, resta a questão: qual seria o seu trabalho, o seu modo de vida, o seu fim e destino em Lisboa? 
                Entre as poesias camonianas há dez que a tradição dá, ou que a critica supõe dedicadas a um senhor D. Antonio de Noronha ou, em parte, consagradas à memória do mesmo fidalgo.
                Tal número de poesias - e de poesias importantíssimas - dirigidas ao mesmo personagem, dá que pensar, muito embora, por causa de troca entre prenomes quase  iguais, algumas delas não se relacionem com D. Antonio, mas sim com outro fidalgo: D. Antão de Noronha.  Ponhamos de parte este D. Antão, e consideremos primeiro quem foi D. Antonio, e que motivos o Camões teria para atar e estreitar relações tão íntimas, mas ainda assim de tão respeitosa amizade como aquele "Senhor", cuja morte prematura o encheu de profundíssima mágoa e lhe arrancou a promessa, depois condignamente cumprida, de eternizar o seu nome! 
                Camões dá ao se amigo D. Antonio de Noronha o título de "Senhor", tratamento que só competia a pessoas da mais qualificada nobreza. D. Antonio era filho primogênito de D. Francisco de Noronha, segundo Conde de Linhares e de sua mulher D. Violante de Andrade (filha do Tesoureiro-mor da Coroa (1549) Fernão Álvares), e sobrinho de D. Pedro de Menezes, Capitão geral de Ceuta. O avo de D. Antonio, e seu padrinho, a julgar pelo nome que é idêntico, era filho segundo do primeiro Marquês de Vila Real e recebera de D. João III o titulo de (primeiro) Conde de Linhares. A família residia nas proximidades de Lisboa, em Xabregas, onde tinha bens de raiz, um pouco a montante da cidade e na mesma margem do rio Tejo, perto de um palácio régio. D. Francisco estava em relações íntimas com a família real; havia poucos anos que assistira em Paris como embaixador de Portugal, junto a Francisco I, Rei de França, 1540 (ou 1541) a 1543. É justo mencionar que favorecia as tendências literárias da sua época, e tinha ao lado como secretário, conselheiro e amigo Francisco Moraes, autor do romance de cavalaria intitulado Palmeirim de Inglaterra. Há apontamentos fidedignos sobre o nascimento do primogênito, e sobre a sorte dos outros seus filhos, no epitáfio enternecedor, inscrito numa lousa sepulcral da capela-mor do mosteiro (de São bento) de Xabregas, e diz:  Sepultura de D. Antonio de Noronha - Filho do segundo Conde de Linhares D. Francisco e da Condessa D. Violante - que os Mouros mataram em Ceuta em 18 de Abril de 1553 annos sendo elle de dezessete. 
                 O morgado D. Antonio, mancebo dotado das mais belas qualidades de espírito, dado às letras, de ânimo esforçado,  gentil cavaleiro, amestrado em todas as artes guerreiras, foi escolhido por el-rei D. João II para a alta honra de ser  parceiro e mantenedor do príncipe real D. João em um magnífico torneio. Em Enxobregas mediu-se lutando com seu amigo real (nascido a 3 de Junho de 1537), o qual, ao completar quinze anos ia dar solenemente o primeiro passo de armas, em 5 de Agosto de 1552. Os juvenis campeões, crianças maravilhosamente precoces, já eram senhores dos seus corações: ambos já o tinham empenhado a uma sua "madona Laura, ou Beatriz". O príncipe casou meses depois, em 5 de Dezembro de 1552, com sua prima, a infanta D. Joana, filha do Imperador Carlos V, mas desde então foi definhando, e morreu ao cabo de treze meses, consumpção corporal, dezoito dias antes do nascimento de seu infeliz filho D. Sebastião. 
                  D. Antonio, pelo seu lado, apaixonara-se por D. Margarida da Silva, filha de D. Garcia de Almeida, neta do segundo conde de Abrantes D. João de Almeida, e portanto sobrinha de um cavaleiro que mais tarde aparecerá com um dos íntimos amigos de Camões, D. Francisco de Almeida.
                 Ao pai, o conde D. Francisco, que talvez nutrisse ambição mais alta, não agradaram estes amores, e para desviar o filha da vista de sua amada, pensando no adágio: "longe dos olhos, longe do coração", mandou-o para Celta, onde os moços fidalgos costumavam então ganhar as suas esporas de cavaleiro. Só quem tinha lança em África, era digno da toga viril. 
                 A escolha da guarnição foi determinada pela circunstância de D. Pedro de Menezes, tio de D. Antônio, ser capitão de Ceuta. Lá alcançara importantes vantagens sobre os mouros de Tetuan, apossando-se de várias praças fortes, e estimulando assim o ódio e o desejo de vingança dos mouros. O alcaide de Tetuan desafiou o capitão, oferecendo-lhe batalha, ou antes um combate entre forças iguais de ambos os lados, que correspondessem exatamente ao número relativamente pequeno de cabeças, de que a guarnição de Ceuta podia dispor. Marcou-se o dia, e o sítio, junto do monte da Condessa, a uma légua de Ceuta. os companheiros de armas, pressentindo a traição e os embustes do mouro, aconselham o capitão a não anuir; mas D. Pedro aceita com imprudente confiança e vai afoito ao encontro do alcaide mouro vindo, aparentemente, seguido de pequena escolta, está claro que só com o número estipulado de soldados. Mas de repente, um troço de cavalaria e uma multidão de peões irrompe perfidamente; três mil infiéis atacam trezentos e tantos portugueses. Já não era possível retirar-se. Pelo menos o capitão julgou ignominia ter de servir-se de tal expediente. Voltando-se para o seu Adail, homem perito, leal e bravo, pergunta: 
                 - Que fazer, Antão Pacheco? 
                 E este, que o dissuadira da arriscada empresa, responde: 
                 - V. M. o quis assim; agora não resta senão morrer com honra. 
                 O combate principia. Breve trezentos e sete cadáveres portugueses cobrem o campo de batalha; cavaleiros experimentados e valorosos, entre eles o capitão e seu Adail Pacheco, ao lado de moços de verdes anos, que mal tinham chegado á pátria. Nomeemos além de D. Antonio de Noronha, Paulo da Silva e André Rodrigues de Beja, colo ele amigos do príncipe D. João e justadores aclamados no célebre torneiro de Xabregas, assim como Gonçalo Mendes, o primogênito do poeta Francisco de Sá de Miranda. Poucos escaparam com vida; entre eles João Rodrigues Pereira, que na "faltriqueira salvou o guião real".
                 Deste modo morreu prematuramente o jovem amigo de Camões, em 18 de Abril de 1553, na idade de dezessete anos. A sua adorada Margarida casou mais tarde, cedendo aos desejos do pai, com D. João da Silva, herdeiro da casa e do título dos condes de Portalegre. 
                  Qual seria a ocasião e o lugar onde Luiz Vaz contraiu laços de íntima amizade com D. Antonio de Noronha? o filho do pobre cavaleiro fidalgo com o descendente do poderoso conde? o adolescente com o moço imberbe e quase criança? À hora em que o herdeiro do título e da casa de Linhares exalava o último alento sobre terra africana, Camões (embarcado desde 26 de Março de 1553) ia navegando para o Oriente, depois de ter vivido encarcerado desde o Corpus-Christi de 1552 (16 de Junho) até sete de março do ano seguinte. - Nos tempos anteriores a esta prisão, o poeta teve, na opinião dos seus biógrafos, durante mais de  dois anos, a vida ociosa de um folgazão arruaceiro, e jogador valentão, ostentando qualidade que de certo não fariam com que fosse escolhido para companheiro do herdeiro de um condado português, o qual então mal contava quatorze anos. De 1548 a 1550 Camões militara em Ceuta;  estes dois anos não podem entrar, portanto, em conta. De 1546 a 1548 viveu desterrado de Lisboa, provavelmente no Ribatejo, de onde regressou com breve demora a fim de inscrever-se, embarcar e partir como soldado raso para o serviço militar da África; má ocasião ainda para travar relações com qualquer nobre cortesão! Restaria portanto disponível, para início desta amizade, exclusivamente a curta estada na capital antes de todos aqueles acontecimentos, isto é, os anos de 1544 a 1545, segundo Lobo, ou 1542 a 1545, segundo Juromenha e Braga, anos  em que D. Antonio contava de nove (ou de seis) a dez anos, enquanto Luis Vaz, segundo a fama corrente, devia ter vinte (ou dezessete) a vinte e um! A diferença que em todo o caso havia da idade de um para o outro era demasiadamente grande para que intimidade verdadeira fosse humanamente possível. Onze anos influi muitíssimo no ânimo da mocidade. 
                E apesar disso, houve, positivamente, afeição. E esta afeição perdurou até a morte de D. Antonio! E deixou na alma de camões profundas saudades!
                 Como explicar o seguinte enigma? 
                 Nenhum biógrafo tentou a solução. E amais ainda; nenhum biógrafo percebeu que havia aqui um problema, um ponto escuro. Duvidou-se apenas que algumas poesias de Camões, que tratam de amores, pudessem ter sido enviadas e dedicadas àquele "rapaz". 
                 Na vida de camões quase tudo,com pouquíssimas exceções, é conjectura, suposição, hipótese, inferida por cálculos de probabilidade. Ousemos entrar aqui também com os nossos.
                 Ao leitor benévolo e consciencioso  compete decidir se o resultado é aceitável ou não. 
                 Foi em 1543 que o conde de Linhares, D. Francisco de Noronha, voltou de França, onde vivera como embaixador ou enviado extraordinário de el-rei D. João III, desde 1540 ou 1541. Ignoro se a esposa, D. Violante, o tinha acompanhado, levando seus filhos, mas quero presumir que os recém-casados - a cuja numerosa descendência já me referi - não se separaram por anos. Seja, contudo, como for, depois da volta à pátria, o conde, que era um magnata afazendado, de alta posição e influência, não podia deixar de resolver sobre a educação de seus filhos, e em especial  do primogênito, o morgado D. Antonio.
                 A criança que ia completar sete anos, já não pertencia ao gineceu; já passara pela escola materna; talvez até já terminasse o curso dos preparatórios vernáculos, de sorte a estar apto para começar os estudos menores na escola latina.   Meios e caminhos para dar uma excelente instrução humanística à mocidade lisbonense não faltavam de modo algum.
 O novíssimo ensino dos Jesuítas era então considerados excelente e benéfico. É exatamente no mesmo ano de 1543 que o Padre-Mestre Simão Rodrigues, Provincial da ordem em Portugal, nos aparece como instrutor do Príncipe D. João. O conde tomaria as suas resoluções em Lisboa, antes de retirar ao seu palácio em Xabregas. Decidiu-se pelo ensino particular, administrado em sua própria casa por professores leigos, provavelmente depois da prévia consulta com Francisco Moraes, que parece ter desempenhado as funções, ou tido pelo menos as honras de conselheiro e aio velho na família de Linhares. Calculo que este escritor incutira ao Conde a ideia de contratar um preceptor opor intervenção do cancelário da Universidade de Coimbra e Prior-Mor de Santa Cruz, chefe dos estabelecimentos  de instrução mais considerados em todo o país, Já sabemos que este posto duplo estava então a cargo de D. Bento de Camões, o tio de Luiz Vaz. O caráter digno e austero do eclesiástico, que, ao mesmo tempo, era um erudito zeloso e distinto, oferecia garantias sobejas para uma escolha acertada. Todos confiavam em que o prelado não recomendaria para aio e mestre, educador e instrutor do jovem herdeiro da casa de Noronha, senão um mancebo notável em "virtudes e letras", isto é, brioso e de maneiras fidalgas, realçadas por eminentes dotes de espírito. 
                   Não seria portanto ligeiramente, sem refletir a sério, mas antes com certo pejo e relutância, ponderando os prós e os contras, que D. Bento daria afinal seu voto a favor do sobrinho. O receio de ser censurado de propenso à balda do nepotismo não podia nem devia dissuadi-lo, todavia, da convicção que entre todos os estudantes bacharéis de Coimbra, ou talvez de todo o reino, não havia nenhum que pudesse rivalizar com Luis Vaz quanto ao saber vasto e profundo. Poliglota, porque sabia as línguas clássicas e algumas modernas (português e espanhol), bom geógrafo e cosmógrafo, conhecedor da história universal e pátria, estava o mancebo à altura da boa educação daquele tempo, destacando-se mesmo da "schiera volgare", porque dispunha além disso de um sólido capital de conhecimentos filosóficos e teológicos. Quanto à moralidade, não havia nada a dizer. É verdade que uma afeição platônica se apoderara do seu coração, mas o sacerdote, depositário de muitos segredos que se escondem no labirinto do coração humano, calculava que a paixão juvenil não resistiria a uma distância de vinte e cinco léguas. 
"porque enfim longa ausência acaba tudo".


Continua